terça-feira, 18 de agosto de 2015

Cartola

Cartola

Dentre as dezenas de sambistas com obra de qualidade superior, Cartola ocupa uma posição singular. As características de suas músicas as tornam facilmente identificáveis mesmo por quem desconhece sua autoria.
Com pouca educação formal, Cartola aperfeiçoou sua verve poética lendo poetas como Castro Alves, Gonçalves Dias, Olavo Bilac e Guerra Junqueiro, o seu preferido. Com nenhuma educação musical suas composições surpreendem pelas linhas melódicas que percorrem caminhos absolutamente pessoais, peculiares.
Poeta do lirismo sua obra mostrava a realidade, a dureza da vida como consta na seguinte letra:

O Mundo é um Moinho

Ainda é cedo, amor
Mal começaste a conhecer a vida
Já anuncias a hora de partida
Sem saber mesmo o rumo que irás tomar
Preste atenção, querida
Embora eu saiba que estás resolvida
Em cada esquina cai um pouco a tua vida
Em pouco tempo não serás mais o que és
Ouça- me bem amor
Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos tão mesquinho
Vai reduzir suas ilusões a pó.
Preste atenção querida
De casa amor tu herdarás só o cinismo
Quando notares estás a beira do abismo
Abismo que cavaste com teus pés.

Vida

O avô do compositor, Luis Cipriano mudou-se junto com a esposa para o Rio de Janeiro para servir como cozinheiro de Nilo Peçanha , deputado da Constituinte de 1890 e, a partir de 1903 senador da República e mais tarde vice-presidente da República completando o mandato do presidente Afonso Pena, falecido em 1909.
O casal Cipriano Gomes trouxe com eles sua única filha Aída e logo depois junto com eles um parente distante, Sebastião Joaquim de Oliveira, o futuro genro. Após o casamento ,os filhos começaram a vir em ritmo regular. Primeiro, duas filhas depois o Agenor a quem se seguiram mais sete irmãos.
O nome completo do compositor era Angenor de Oliveira.
A mãe de Cartola engravidou deste no período do Carnaval. O compositor nasceu no dia 11 de outubro de 1908 no dia da festa da Penha a mais importante e popular da época.
Em 1916, quando Cartola tinha oito anos, a família se mudaria para a rua das Laranjeiras, numa vila para os operários da Fábrica de Tecidos Aliança. Nas redondezas, estava sendo construído o estádio de sue time de coração, Fluminense.
Tudo era felicidade na fase inicial da vida de Cartola. Um avô que o adorava e protegia o neto, uma família unida. Antes de seu avô morrer não havia menino mais bem vestido do que ele.
E foi justamente pelas mãos do Rancho dos Arrepiados, um dos dois que reunia os operários da fábrica e o preferido de sua família que Cartola foi apresentado ao samba. O rancho adotou as cores verde e rosa que anos mais tarde serviriam de inspiração para Cartola elegê-las como as cores da Mangueira. A família inteira saia no bloco- mãe, irmãos e o pai tocando cavaquinho.
Esta vida razoavelmente organizada sofreu uma reviravolta com a morte do avô. A família composta por pai, mãe e 6 filhos com Cartola com onze anos de idade teve que se mudar dessa vez para o morro da Mangueira, cuja favela não registrava mais do que cinquenta barracos, a primeira estação da Estrada de Ferro II. O aperto financeiro da família, agravado pela chegada de mais três filhos, obrigou o carpinteiro Sebastião a botar seu filho mais velho para procurar emprego, exigindo-lhe todo o salário no final do mês. Começaram ai os primeiros conflitos entre pai e filho com a mãe sempre defendendo o filho predileto.
O primeiro trabalho foi numa tipografia. Mas ele abandonava os trabalhos que arranjava com frequência metódica e ia se juntando com as bocas e os malandros, guiado pela mão de seu primeiro amigo no morro e parceiro de toda a vida Carlos Cachaça, seis anos mais velho.
Veio de um de seus empregos o nome Cartola. Admirado com sucesso dos pedreiros de uma obra por onde passava a caminho do trabalho em uma gráfica, com as garotas, Cartola decidiu ser pedreiro também. Para evitar que o cimento lhe caísse nos cabelos passou a usar um chapéu coco e não apenas nos horários de trabalho. O apelido permaneceu pelo resto da vida.
Pai e filho tinham gosto pela arte. Por volta de 1923, estudavam no Liceu de Artes e Ofícios. Ou melhor apenas um dos dois já que Cartola esperava o pai subir para sua sala e ia procurar assuntos mais interessantes na rua. Ao final da aula, Cartola esperava o pai do lado de fora. A trapaça só foi descoberta no final de ano, com a previsível reprovação do garoto.
Em 1926, aconteceu a tragédia que marcaria a primeira fase da vida de Cartola: a morte da mãe em consequência de um parto.
Cartola passou a sentir algo estranho, sofreu muito com a morte da mãe.
Dias depois, seu pai o expulsava de casa.

Deolinda

Sem casa, sem família, não restavam muitas opções para Cartola. Perambulava pelo morro, dormia no trem, indo até a estação final.de Dona Clara e fazendo o percurso de volta durante a noite inteira, Descobriu a zona do meretrício onde se relacionou com várias mulheres contraindo todas as doenças venéreas possíveis.
No barraco que havia conseguido emprestado, derrubado pela fome e pelas doenças, Cartola chamou a atenção de sua vizinha, casada, com 25 anos e uma filha. Dona Deolinda passou a cuidar do garoto como uma mãe dava remédio, fazia sopa, lavava sua roupa. Quando os sentimentos que ambos sentiam um pelo outro evoluíram para sentimentos que um homem sente por uma mulher , o marido de Deolinda, Astolfo se revoltou e deixou a esposa. Deixou para Cartola mulher, a filha Ruth e o sogro Pau do Mato, um ex- escravo. Aos 18 anos, Cartola era chefe de família.
Chefe em termos. Não havia nenhuma dúvida que a personalidade dominadora e preponderante era a de Deolinda. Até porque o repeitado pedreiro Cartola não era muito chegado ao batente, preferindo consumir bebida alcoólica, tocar violão e fazer sambas. No final da década de 20 estavam incorporados ao barraco uma tia de Deolinda, um primo, um irmão e um amigo de Cartola, além de uma moça que não tinha onde morar. Lavando roupa, era Deolinda que sustentava a casa.
Anos mais tarde, tuberculoso e abandonado, Astolfo seria acolhido em casa por Cartola, todo dia punha-o para tomar sol, comprava-lhe cigarros até lhe dava banho.

A Fundação da Estação Primeira de Mangueira

Cartola e um punhado de amigos resolveram fundar um bloco, que estimulasse a farra, o desfile no morro e bairros vizinhos e se espalhasse até a Praça Onze e Botafogo. Estavam dispostos a brigar, ser presos, bater, apanhar. O Bloco dos Arengueiros e seus componentes, no entanto também eram bons de samba. Não demorou muito para que sete deles decidissem fundar uma escola de samba. No dia 28 de abril de 1928, na casa de um dos Arengueiros, em Mangueira foi fundada a Estação Primeira de Mangueira cujos fundadores foram Euclides Roberto dos Santos, Saturnino Gonçalves, Angenor de Oliveira (Cartola), Marcelino José Claudino ( Massu). José Gomes da Costa ( Zé Espinguela),Pedro Caim e Abelardo da Bolina. A escola com o passar do tempo, ganhou fama internacional.
Nos anos seguintes, o diretor de harmonia Cartola, com diversos parceiros, forneceu os sambas cantados pela Mangueira nos desfiles.

Decadência

A tragédia mais uma vez estava no caminho de Cartola. Em 1946 ele contraiu meningite. Durante um ano cuidado com doses maciças de penicilina e pelos cuidados de Deolinda Cartola chegou a beira da morte. A recuperação gerou um dos clássicos do compositor “ Grande Deus” (“ Deus , grande Deus/ meu destino bem sei foi traçado pelos dedos teus/Grande Deus, de joelho seu voltei para e implorar/ Perdoai-me se errei um dia(...)/ Julguei Senhor, daquele sono jamais despertaria/ Se errei, perdoai-me pelo amor de Maria.
A doença seguiu-se a perda decisiva. Deolinda, que já apresentava alguns indícios de doença cardíaca, morreu enquanto lidava com as tarefas de casa. Viúvo, desprezado pela escola que havia ajudado a fundar, Cartola sumiu do morro, parou de tocar e compor.
Esse período da vida de Cartola durou seis anos. Ele acabou por arrumar uma nova mulher, Donária e mudou-se com ela para Nilópolis, na Baixada Fluminense. O s poucos amigos que conviveram com ele neste período de decadência dão depoimentos muito negativos. Cartola estava depauperado fisicamente e emocionalmente. Muito magro, sem dentes, consumia dois litros de cachaça em édia por dia. Quem o acudiu neste período difícil foi o velho amigo Carlos Cachaça que logo se tornaria seu concunhado.
Graças a jornalistas como Sérgio Porto um dos mais conceituados jornalistas do país e um dos colunistas mais lidos nos jornais do Rio além de uma das principais figuras do humor nacional pois escrevia textos humorísticos sob o pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta e ao cartunista Lan e principalmente a uma pessoa que seria figura importantíssima na vida do compositor uma mulher chamada Zica , a Dona Zica irmã de Menina por sinal irmã de Carlos Cachaça, conhecida de Cartola desde menina.
O episódio confirma famoso ditado de que atrás de um grande homem existe uma grande mulher. Porque Zica aceitou o compositor no estado em que estava e assim começou o lento processo de ressurreição de Cartola..

A Ajuda dos amigos

O primeiro emprego relativamente estável de Cartola foi o de lavador de carros em Ipanema.
Sergio Porto encontrou o compositor em um bar e teve confirmação; era mesmo o Cartola da Mangueira. Descoberto este fato o jornalista saudou a descoberta em sua coluna e reclamou do desinteresse de cantores e fábricas de disco pela obra do mestre. Levou-o para trabalhar na Rádio Mayrink Veiga, onde tinha um programa. Com a ajuda de Lan e de seu tio Lúcio Rangel- famoso crítico, musicólogo e mais antigo ainda admirador de Cartola levou-o a jornais, programas de rádio, bares , restaurantes.
As tentativas de ajuda vinham também de políticos e funcionários públicos graduados tais como Ivete Vargas, filha do presidente Getúlio Vargas que recomendou-o a um emprego. O compositor não conseguiu o emprego por causa do alcoolismo. Guilherme Romano, que era médico famoso, dono de hospital e político conseguiu que o governo montasse uma barraca da Cofap ( um armazém que vendia alimentos básicos a preços subsidiados) na Mangueira. Zica e Cartola tomavam conta do estabelecimento. Com a extinção da Cofap, arrumaram para Cartola o cargo de servente no ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. Após uma reorganização ministerial, ele foi para Ministério de Indústria e Comércio agora com o cargo de funcionário de representação, que consistia basicamente em servir cafezinho no gabinete do ministro.
Por interferência de outro funcionário público, Mário Saladini, diretor do Departamento de Turismo, Cartola e Zica conseguiram mais um trabalho; zeladores de um prédio desapropriado no centro da cidade, onde ocupavam o segundo andar como moradia. Zica fornecia almoço durante o dia, marmita para os motoristas de ônibus e cobradores da região no período noturno e uma sopa para os participantes das reuniões da Associação das Escolas de Samba que ocupavam o primeiro andar.

O Zicartola

A casa passou a ser ponto de encontro dos amigos sambistas tais como Nelson Cavaquinho, Zé Keti, Nelson Sargento, Elton Medeiros a um futuro astro da bossa nova chamado Carlos Lyra. A casa se tornou a mais prestigiada casa de samba do Rio de Janeiro nos anos 60. Era o Zicartola
A idéia foi de Eduardo Agostini- bem-sucedido homem de negócios, dono da caderneta de poupança Cofrelar que era apaixonado por samba e queria montar um botequim onde o errado era não poder cantar , não poder batucar. E principalmente dar a Zica( sócia no empreendimento e chefe de cozinha) e Cartola ( responsável pela música) um negócio próprio que servisse para lhes equilibrar as finanças.
Com o nome de Zicartola, inventado pelo compositor, rapidamente o sobradinho da rua da Carioca n 53 transformou-se no programa maia quente da noite do Rio, tanto para sambistas pobres ou remediados de toda a cidade como para admiradores vindos da rica Zona Sul. A princípio restrita ás noites de segunda-feira, logo as rodas de samba se ampliaram para as quartas-feiras. Zé Keti se encarregava na divulgação na imprensa carioca., Hermínio Bello de Carvalho inventou a Ordem da Cartola Dourada concedida a grandes nomes da música popular brasileira. Os primeiros que receberam o prêmio foram Lindaura Rosa, viúva de Noel Rosa numa homenagem póstuma ao compositor e o cantor Ciro Monteiro. Albino Pinheiro comandava as noite de quarta.
O grupo da casa reunia alguns dos melhores sambistas da época: o próprio Cartola, Nelson Cavaquinho, João do Valle, Zé Keti, Pandeirinho, Ismael Silva e até um jovem em vias de abandonar sua profissão de bancário, que viria a se tornar famoso como Paulinho da Viola.

Dona Zica
A preocupação de Cartola com a segurança financeira de Zica era constante, segundo diversos amigos. E um dia o compositor disse a companheira: Zica nós já vivemos juntos há doze anos. Você está viúva, eu também. Que tal se nós nos casarmos ?
Ao levar os documentos necessários para o casório, Cartola descobriu que o funcionário do cartório grafara seu nome como Angenor.
A cerimônia foi realizada na Paróquia de Nossa Senhora da Glória, no dia 23 de outubro de 1964. Cartola tinha acabado de completar cinquenta e seis anos e Zica cinquenta e um. Na véspera, deu de presente para a futura esposa um de seus mais lindos sambas “ Nós Dois” Um samba em que jura fidelidade a futura esposa ele que em outro samba confessara abertamente seus amores passados. O casamento durou até a morte de Cartola.
Foi também graças a Zica que Cartola acabou por reconciliar-se com o pai que o aceitou de volta.

Morte

Na década de 70 Cartola excursionou pelo país na companhia de João Nogueira pelo projeto Pixinguinha, uma iniciativa da Funarte que juntava dois grandes artistas para excursionar por todo o Brasil. E foi em Curitiba que o compositor recebeu a notícia da morte do pai. Extremamente profissional, fez o show de noite, tomou um avião para o Rio na manhã seguinte, assistiu ao enterro do pai e à noite estava de volta a Curitiba para nova apresentação.
O sucesso artístico, o reconhecimento nacional, o conforto financeiro, eram contrabalançados pelo estado precário de sua saúde.Os milhares de cigarros, os hectolitros de álcool, começavam a apresentar a conta Ainda em 1977, depois de um show em Belo Horizonte, um médico amigo percebeu uma saliência no pescoço de Cartola. Aconselhou um exame mais apurado. A atribulada agenda profissional e o descaso com a própria saúde adiaram a recomendação por quase dois meses. Examinado, o quisto revelou-se um câncer na tireoide. Á operação deveriam se seguir uma série de aplicações de cobalto. Cartola não fez nenhuma. Três meses depois, um derrame cerebral levaria o compositor novamente ao hospital. Menos de dois anos após a primeira operação, o câncer voltou e uma outra operação se fez necessária. Dessa vez, Cartola se submeteu a radioterapia, mas as sequelas do tratamento eram terríveis, os acessos de vômitos constantes. Mais alguns meses, nova internação para controlar uma forte hemorragia no estômago.
Cartola faleceu no dia 30 de novembro de 1980.