Cartola
Dentre as dezenas de
sambistas com obra de qualidade superior, Cartola ocupa uma posição
singular. As características de suas músicas as tornam facilmente
identificáveis mesmo por quem desconhece sua autoria.
Com pouca educação
formal, Cartola aperfeiçoou sua verve poética lendo poetas como
Castro Alves, Gonçalves Dias, Olavo Bilac e Guerra Junqueiro, o seu
preferido. Com nenhuma educação musical suas composições
surpreendem pelas linhas melódicas que percorrem caminhos
absolutamente pessoais, peculiares.
Poeta do lirismo sua obra
mostrava a realidade, a dureza da vida como consta na seguinte letra:
O Mundo é um Moinho
Ainda é cedo, amor
Mal começaste a conhecer
a vida
Já anuncias a hora de
partida
Sem saber mesmo o rumo
que irás tomar
Preste atenção, querida
Embora eu saiba que estás
resolvida
Em cada esquina cai um
pouco a tua vida
Em pouco tempo não serás
mais o que és
Ouça- me bem amor
Preste atenção, o mundo
é um moinho
Vai triturar teus sonhos
tão mesquinho
Vai reduzir suas ilusões
a pó.
Preste atenção querida
De casa amor tu herdarás
só o cinismo
Quando notares estás a
beira do abismo
Abismo que cavaste com
teus pés.
Vida
O avô do compositor,
Luis Cipriano mudou-se junto com a esposa para o Rio de Janeiro para
servir como cozinheiro de Nilo Peçanha , deputado da Constituinte de
1890 e, a partir de 1903 senador da República e mais tarde
vice-presidente da República completando o mandato do presidente
Afonso Pena, falecido em 1909.
O casal Cipriano Gomes
trouxe com eles sua única filha Aída e logo depois junto com eles
um parente distante, Sebastião Joaquim de Oliveira, o futuro genro.
Após o casamento ,os filhos começaram a vir em ritmo regular.
Primeiro, duas filhas depois o Agenor a quem se seguiram mais sete
irmãos.
O nome completo do
compositor era Angenor de Oliveira.
A mãe de Cartola
engravidou deste no período do Carnaval. O compositor nasceu no dia
11 de outubro de 1908 no dia da festa da Penha a mais importante e
popular da época.
Em 1916, quando Cartola
tinha oito anos, a família se mudaria para a rua das Laranjeiras,
numa vila para os operários da Fábrica de Tecidos Aliança. Nas
redondezas, estava sendo construído o estádio de sue time de
coração, Fluminense.
Tudo era felicidade na
fase inicial da vida de Cartola. Um avô que o adorava e protegia o
neto, uma família unida. Antes de seu avô morrer não havia menino
mais bem vestido do que ele.
E foi justamente pelas
mãos do Rancho dos Arrepiados, um dos dois que reunia os operários
da fábrica e o preferido de sua família que Cartola foi apresentado
ao samba. O rancho adotou as cores verde e rosa que anos mais tarde
serviriam de inspiração para Cartola elegê-las como as cores da
Mangueira. A família inteira saia no bloco- mãe, irmãos e o pai
tocando cavaquinho.
Esta vida razoavelmente
organizada sofreu uma reviravolta com a morte do avô. A família
composta por pai, mãe e 6 filhos com Cartola com onze anos de idade
teve que se mudar dessa vez para o morro da Mangueira, cuja favela
não registrava mais do que cinquenta barracos, a primeira estação
da Estrada de Ferro II. O aperto financeiro da família, agravado
pela chegada de mais três filhos, obrigou o carpinteiro Sebastião a
botar seu filho mais velho para procurar emprego, exigindo-lhe todo o
salário no final do mês. Começaram ai os primeiros conflitos entre
pai e filho com a mãe sempre defendendo o filho predileto.
O primeiro trabalho foi
numa tipografia. Mas ele abandonava os trabalhos que arranjava com
frequência metódica e ia se juntando com as bocas e os malandros,
guiado pela mão de seu primeiro amigo no morro e parceiro de toda a
vida Carlos Cachaça, seis anos mais velho.
Veio de um de seus
empregos o nome Cartola. Admirado com sucesso dos pedreiros de uma
obra por onde passava a caminho do trabalho em uma gráfica, com as
garotas, Cartola decidiu ser pedreiro também. Para evitar que o
cimento lhe caísse nos cabelos passou a usar um chapéu coco e não
apenas nos horários de trabalho. O apelido permaneceu pelo resto da
vida.
Pai e filho tinham gosto
pela arte. Por volta de 1923, estudavam no Liceu de Artes e Ofícios.
Ou melhor apenas um dos dois já que Cartola esperava o pai subir
para sua sala e ia procurar assuntos mais interessantes na rua. Ao
final da aula, Cartola esperava o pai do lado de fora. A trapaça só
foi descoberta no final de ano, com a previsível reprovação do
garoto.
Em 1926, aconteceu a
tragédia que marcaria a primeira fase da vida de Cartola: a morte da
mãe em consequência de um parto.
Cartola passou a sentir
algo estranho, sofreu muito com a morte da mãe.
Dias depois, seu pai o
expulsava de casa.
Deolinda
Sem casa, sem família,
não restavam muitas opções para Cartola. Perambulava pelo morro,
dormia no trem, indo até a estação final.de Dona Clara e fazendo o
percurso de volta durante a noite inteira, Descobriu a zona do
meretrício onde se relacionou com várias mulheres contraindo todas
as doenças venéreas possíveis.
No barraco que havia
conseguido emprestado, derrubado pela fome e pelas doenças, Cartola
chamou a atenção de sua vizinha, casada, com 25 anos e uma filha.
Dona Deolinda passou a cuidar do garoto como uma mãe dava remédio,
fazia sopa, lavava sua roupa. Quando os sentimentos que ambos sentiam
um pelo outro evoluíram para sentimentos que um homem sente por uma
mulher , o marido de Deolinda, Astolfo se revoltou e deixou a esposa.
Deixou para Cartola mulher, a filha Ruth e o sogro Pau do Mato, um
ex- escravo. Aos 18 anos, Cartola era chefe de família.
Chefe em termos. Não
havia nenhuma dúvida que a personalidade dominadora e preponderante
era a de Deolinda. Até porque o repeitado pedreiro Cartola não era
muito chegado ao batente, preferindo consumir bebida alcoólica,
tocar violão e fazer sambas. No final da década de 20 estavam
incorporados ao barraco uma tia de Deolinda, um primo, um irmão e um
amigo de Cartola, além de uma moça que não tinha onde morar.
Lavando roupa, era Deolinda que sustentava a casa.
Anos mais tarde,
tuberculoso e abandonado, Astolfo seria acolhido em casa por Cartola,
todo dia punha-o para tomar sol, comprava-lhe cigarros até lhe dava
banho.
A Fundação da Estação
Primeira de Mangueira
Cartola e um punhado de
amigos resolveram fundar um bloco, que estimulasse a farra, o desfile
no morro e bairros vizinhos e se espalhasse até a Praça Onze e
Botafogo. Estavam dispostos a brigar, ser presos, bater, apanhar. O
Bloco dos Arengueiros e seus componentes, no entanto também eram
bons de samba. Não demorou muito para que sete deles decidissem
fundar uma escola de samba. No dia 28 de abril de 1928, na casa de um
dos Arengueiros, em Mangueira foi fundada a Estação Primeira de
Mangueira cujos fundadores foram Euclides Roberto dos Santos,
Saturnino Gonçalves, Angenor de Oliveira (Cartola), Marcelino José
Claudino ( Massu). José Gomes da Costa ( Zé Espinguela),Pedro Caim
e Abelardo da Bolina. A escola com o passar do tempo, ganhou fama
internacional.
Nos anos seguintes, o
diretor de harmonia Cartola, com diversos parceiros, forneceu os
sambas cantados pela Mangueira nos desfiles.
Decadência
A tragédia mais uma vez
estava no caminho de Cartola. Em 1946 ele contraiu meningite. Durante
um ano cuidado com doses maciças de penicilina e pelos cuidados de
Deolinda Cartola chegou a beira da morte. A recuperação gerou um
dos clássicos do compositor “ Grande Deus” (“ Deus , grande
Deus/ meu destino bem sei foi traçado pelos dedos teus/Grande Deus,
de joelho seu voltei para e implorar/ Perdoai-me se errei um
dia(...)/ Julguei Senhor, daquele sono jamais despertaria/ Se errei,
perdoai-me pelo amor de Maria.
A doença seguiu-se a
perda decisiva. Deolinda, que já apresentava alguns indícios de
doença cardíaca, morreu enquanto lidava com as tarefas de casa.
Viúvo, desprezado pela escola que havia ajudado a fundar, Cartola
sumiu do morro, parou de tocar e compor.
Esse período da vida de
Cartola durou seis anos. Ele acabou por arrumar uma nova mulher,
Donária e mudou-se com ela para Nilópolis, na Baixada Fluminense. O
s poucos amigos que conviveram com ele neste período de decadência
dão depoimentos muito negativos. Cartola estava depauperado
fisicamente e emocionalmente. Muito magro, sem dentes, consumia dois
litros de cachaça em édia por dia. Quem o acudiu neste período
difícil foi o velho amigo Carlos Cachaça que logo se tornaria seu
concunhado.
Graças a jornalistas
como Sérgio Porto um dos mais conceituados jornalistas do país e um
dos colunistas mais lidos nos jornais do Rio além de uma das
principais figuras do humor nacional pois escrevia textos
humorísticos sob o pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta e ao
cartunista Lan e principalmente a uma pessoa que seria figura
importantíssima na vida do compositor uma mulher chamada Zica , a
Dona Zica irmã de Menina por sinal irmã de Carlos Cachaça,
conhecida de Cartola desde menina.
O episódio confirma
famoso ditado de que atrás de um grande homem existe uma grande
mulher. Porque Zica aceitou o compositor no estado em que estava e
assim começou o lento processo de ressurreição de Cartola..
A Ajuda dos amigos
O primeiro emprego
relativamente estável de Cartola foi o de lavador de carros em
Ipanema.
Sergio Porto encontrou o
compositor em um bar e teve confirmação; era mesmo o Cartola da
Mangueira. Descoberto este fato o jornalista saudou a descoberta em
sua coluna e reclamou do desinteresse de cantores e fábricas de
disco pela obra do mestre. Levou-o para trabalhar na Rádio Mayrink
Veiga, onde tinha um programa. Com a ajuda de Lan e de seu tio Lúcio
Rangel- famoso crítico, musicólogo e mais antigo ainda admirador de
Cartola levou-o a jornais, programas de rádio, bares , restaurantes.
As tentativas de ajuda
vinham também de políticos e funcionários públicos graduados tais
como Ivete Vargas, filha do presidente Getúlio Vargas que
recomendou-o a um emprego. O compositor não conseguiu o emprego por
causa do alcoolismo. Guilherme Romano, que era médico famoso, dono
de hospital e político conseguiu que o governo montasse uma barraca
da Cofap ( um armazém que vendia alimentos básicos a preços
subsidiados) na Mangueira. Zica e Cartola tomavam conta do
estabelecimento. Com a extinção da Cofap, arrumaram para Cartola o
cargo de servente no ministério do Trabalho, Indústria e Comércio.
Após uma reorganização ministerial, ele foi para Ministério de
Indústria e Comércio agora com o cargo de funcionário de
representação, que consistia basicamente em servir cafezinho no
gabinete do ministro.
Por interferência de
outro funcionário público, Mário Saladini, diretor do Departamento
de Turismo, Cartola e Zica conseguiram mais um trabalho; zeladores de
um prédio desapropriado no centro da cidade, onde ocupavam o segundo
andar como moradia. Zica fornecia almoço durante o dia, marmita
para os motoristas de ônibus e cobradores da região no período
noturno e uma sopa para os participantes das reuniões da Associação
das Escolas de Samba que ocupavam o primeiro andar.
O Zicartola
A casa passou a ser ponto
de encontro dos amigos sambistas tais como Nelson Cavaquinho, Zé
Keti, Nelson Sargento, Elton Medeiros a um futuro astro da bossa nova
chamado Carlos Lyra. A casa se tornou a mais prestigiada casa de
samba do Rio de Janeiro nos anos 60. Era o Zicartola
A idéia foi de Eduardo
Agostini- bem-sucedido homem de negócios, dono da caderneta de
poupança Cofrelar que era apaixonado por samba e queria montar um
botequim onde o errado era não poder cantar , não poder batucar. E
principalmente dar a Zica( sócia no empreendimento e chefe de
cozinha) e Cartola ( responsável pela música) um negócio próprio
que servisse para lhes equilibrar as finanças.
Com o nome de Zicartola,
inventado pelo compositor, rapidamente o sobradinho da rua da Carioca
n 53 transformou-se no programa maia quente da noite do Rio, tanto
para sambistas pobres ou remediados de toda a cidade como para
admiradores vindos da rica Zona Sul. A princípio restrita ás noites
de segunda-feira, logo as rodas de samba se ampliaram para as
quartas-feiras. Zé Keti se encarregava na divulgação na imprensa
carioca., Hermínio Bello de Carvalho inventou a Ordem da Cartola
Dourada concedida a grandes nomes da música popular brasileira. Os
primeiros que receberam o prêmio foram Lindaura Rosa, viúva de Noel
Rosa numa homenagem póstuma ao compositor e o cantor Ciro Monteiro.
Albino Pinheiro comandava as noite de quarta.
O grupo da casa reunia
alguns dos melhores sambistas da época: o próprio Cartola, Nelson
Cavaquinho, João do Valle, Zé Keti, Pandeirinho, Ismael Silva e até
um jovem em vias de abandonar sua profissão de bancário, que viria
a se tornar famoso como Paulinho da Viola.
Dona Zica
A preocupação de
Cartola com a segurança financeira de Zica era constante, segundo
diversos amigos. E um dia o compositor disse a companheira: Zica nós
já vivemos juntos há doze anos. Você está viúva, eu também. Que
tal se nós nos casarmos ?
Ao levar os documentos
necessários para o casório, Cartola descobriu que o funcionário do
cartório grafara seu nome como Angenor.
A cerimônia foi
realizada na Paróquia de Nossa Senhora da Glória, no dia 23 de
outubro de 1964. Cartola tinha acabado de completar cinquenta e seis
anos e Zica cinquenta e um. Na véspera, deu de presente para a
futura esposa um de seus mais lindos sambas “ Nós Dois” Um samba
em que jura fidelidade a futura esposa ele que em outro samba
confessara abertamente seus amores passados. O casamento durou até a
morte de Cartola.
Foi também graças a
Zica que Cartola acabou por reconciliar-se com o pai que o aceitou de
volta.
Morte
Na década de 70 Cartola
excursionou pelo país na companhia de João Nogueira pelo projeto
Pixinguinha, uma iniciativa da Funarte que juntava dois grandes
artistas para excursionar por todo o Brasil. E foi em Curitiba que o
compositor recebeu a notícia da morte do pai. Extremamente
profissional, fez o show de noite, tomou um avião para o Rio na
manhã seguinte, assistiu ao enterro do pai e à noite estava de
volta a Curitiba para nova apresentação.
O sucesso artístico, o
reconhecimento nacional, o conforto financeiro, eram contrabalançados
pelo estado precário de sua saúde.Os milhares de cigarros, os
hectolitros de álcool, começavam a apresentar a conta Ainda em
1977, depois de um show em Belo Horizonte, um médico amigo percebeu
uma saliência no pescoço de Cartola. Aconselhou um exame mais
apurado. A atribulada agenda profissional e o descaso com a própria
saúde adiaram a recomendação por quase dois meses. Examinado, o
quisto revelou-se um câncer na tireoide. Á operação deveriam se
seguir uma série de aplicações de cobalto. Cartola não fez
nenhuma. Três meses depois, um derrame cerebral levaria o compositor
novamente ao hospital. Menos de dois anos após a primeira operação,
o câncer voltou e uma outra operação se fez necessária. Dessa
vez, Cartola se submeteu a radioterapia, mas as sequelas do
tratamento eram terríveis, os acessos de vômitos constantes. Mais
alguns meses, nova internação para controlar uma forte hemorragia
no estômago.
Cartola faleceu no dia 30
de novembro de 1980.